OLIVETTI 

 

(Não sei a data em que foi publicada) 

Hoje, o saudosismo tomou conta. Nada triste, melancólico. Eu havia me deitado para curtir a sesta e tentar me restabelecer de uma noite em que havia dormido pouco. Mal havia me deitado e devaneios surgiram. Um deles me conduziu até uma velha máquina datilográfica que tive. Lembrei-me dos vários textos nela datilografados, quantas provas elaboradas. Ela chegava a fazer algum sucesso, pois seus tipos eram ligeiramente menores do que os tradicionais, o que conferia aos textos nela datilografados uma certa elegância e um certo comedimento sábio.

Também num tempo que se foi eu tinha um respeito exagerado por livros. Demorei muitos anos para perder esse “respeito”. Enquanto ele existiu, eu me proibia de fazer qualquer marcação que fosse em qualquer livro. Jamais. Atitude ultrajante, inadmissível. Com o passar dos anos, a coisa foi ficando complicada. A princípio, eu lia e escrevia à mão os trechos de que gostava, para depois guardá-los dentro do livro. Quando os trechos eram muitos, eu anotava onde começavam e terminavam e após a leitura os datilografava.

Ainda no devaneio, lembrei-me de que tenho comigo trechos e mais trechos datilografados do “Grande Sertão: Veredas”. Contudo, mesmo datilografar estava ficando complicado. Então, forçando-me, comecei a marcar os livros. A princípio usando lápis; hoje em dia, caneta. Só que não deixei de ter a sensação de que estou caindo em sacrilégio. Tanto que há livros que ainda não tive coragem de marcar. “Moby Dick”, do Melville, é um deles; um outro é um livro cujo título traduzido seria algo como “O Livro das Coisas que nunca Existiram”. Eu ainda os “preservo”. Quanto a eles, mantenho o escrúpulo. Já tentei e tentei a primeira marcação, ainda que feita com lápis, mas não consegui. Fato é que não consegui me livrar da impressão de que marcar livros é coisa feia. Princípio esse que contraria, por exemplo, Quintana. Há um trecho dele em que é dito que os livros, principalmente os infantis, devem vir com muitos espaços em branco para que a criançada possa fazer a festa. Por ora, ainda não aprendi a curtir essa festa, a despeito dos sensatos argumentos já enumerados por amigos.

Aconteceu que o devaneio me fez abandonar a vontade de tirar a soneca. Levantei-me e saí à procura da velha Olivetti, numa vontade grande de escutar seu tac-tac-tac-tac-tac-tac-plim. Revirei a casa e não achei. Meu irmão estava no banho. Gritei para ele sobre o paradeiro da máquina. Ele me lembrou de que eu a havia dado para o Bruno, nosso sobrinho. Liguei para a casa dele. Nada. Liguei para o celular. Ninguém. Fiquei na vontade, de modo que o jeito foi apelar para um computador, já que não tenho o hábito de produzir textos à mão. Assim, esta crônica saudosista vai sendo escrita por intermédio de equipamento fora de sintonia com a saudade que tomou conta. Em busca de um tom sépia, estou diante de fartura de cores. Mas tudo bem. A tecnologia pode também servir à saudade e agradar aos caprichos dos mais velhos.

Não me dou por rendido. Que o entusiasmo não arrefeça. Meu sobrinho deve estar na escola. Logo mais, pretendo ligar para ele e pedir-lhe emprestada a velha máquina. Não importa que esta crônica tenha sido escrita em computador. Dou um jeito de bolar depois qualquer besteira só para sentir o gosto de tocar aquele velho teclado amigo.

Sintoma de que a idade vem chegando? Certamente. Mas a idade vem chegando desde que nasci. Não me preocupo. É que bateu a saudade de coisas antigas, de papéis amarelecidos, de páginas saboreadas por traças. Cheiro de passado, cores de antanho, papéis perenes. Entrementes, permitam-me acionar o comando Ctrl+B. É preciso salvar a crônica.

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