SOIS LUZ 

 

(Publicada em 29 de setembro de 1.997) 

Freqüentemente passo um dia inteiro com uma canção na cabeça. Pode ser uma que eu tenha acabado de ouvir no rádio; pode ser uma que me vem à mente de repente, sem mais nem menos. Esteja eu fazendo o que for, e lá está a canção na cabeça, presente sem incomodar, dando o tom sem me deixar desafinar.

Há palavras. De repente, uma surge, e pronto: fico o dia inteiro com ela na cabeça, geralmente tentando me lembrar onde a li ou onde a ouvi. Não me esqueço dela, que fica sendo repetida sempre, com veneração. Assim já foi com a palavra fornido, com a centelha. Chego a pronunciá-las, numa espécie de contato carnal com elas. Digo em voz alta: mansarda; em seguida, silencio-me, concentro-me na palavra, separo suas sílabas, misturo-as; leio-a de trás para frente – coisa que também gosto de fazer com os números.

Hoje, dezoito de setembro, a palavra é luzeiro. Palavra belíssima. Ela me dominou e quase tenho certeza de que a origem dessa súbita lembrança está no Gênesis: “Que haja luzeiros no firmamento”. (Aliás, firmamento é outra palavra formidável.) Luzeiro vai tomando conta de mim, faz-me pensar num Luzeiro do Sul. Daria poesia, ensaio, tese, teoria, romance, crônica, conto, apontamento, máxima: a palavra é incentivadora. Luzeiro é uma palavra... iluminante. É luz sobre qualquer dia, e estou mesmo pensando em me lembrar dela todos os dias, numa esperança de dar banhos de luz diários em minha alma. Sei que sempre que eu parar para pensar em luzeiro, algo em mim será melhor. Luzeiro é palavra que incita, sugere; minha abre-te-sésamo: há tesouros escondidos em mim que tenho de “roubar”; há entradas secretas que desconheço; um luzeiro me salvaria. Há escuridões incomodantes que jamais viram luz pela fresta. Há raios solares que vêm lá de longe, driblam nuvens, encontram passagem através da janela praticamente fechada e descansam na escrivaninha.

Luzirão meus olhos, assim como luzem sementes que brotam e empurram a terra; Marcel Proust; abraço pra matar a saudade; idéia genial; busca incessante; dom exercido; Lua cheia; bondade; “Grande Sertão: Veredas”; matemática; Francisca de Castro Oliveira (minha tia); erro assumido; barulho de mar ou de amor. Sois luz. Luzirei como vós.

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