DIÁLOGO 
 

(Crônica não publicada em jornal.) 

O tempo estava chove-não-chove.
Céu nublado, noite escura. Estamos em meados de novembro. Na cozinha, duas cigarras conversam.
– Viu quem acabou de chegar?
– Quem?
– Mais um daqueles estabanados.
– Ih. Não me diga que temos na área mais um daqueles besouros burros.
– Pois temos. Mas pelo menos a gente vai se divertir um bocado às custas dele, não?
– Sim, mas às vezes cansa. É a mesma piada contada depois, depois e depois...
– Ora, relaxe. Considero que são diversão garantida.
– Numa boa: confesso que já os achei mais engraçados. A bem da verdade, u já os achei muito engraçados mesmo, principalmente na infância. Hoje, eu os acho simplesmente estúpidos. Sabe de uma coisa? Confesso que às vezes tenho até pena deles. Olha lá: ele já começou aquele vôo desengonçado pela cozinha. Eu não entendo nem a utilidade das asas dele. Tem asas, mas não sabe voar.
– É... Percebo que hoje você está amargo.
– Não é isso, amigo. Mas confesso que a estupidez me irrita. Veja se isso são modos: o sujeito fica esbarrando em tudo quanto é coisa. São cegos? Olha lá: como é que ele não conseguiu ver aquele armário daquele tamanho?!... É preciso ser cego ou muito tolo – ou então as duas coisas.
– Ah, eu prefiro ver o lado engraçado das coisas. É muito divertido uma criatura que fica voando por aí e trombando nas coisas. Acho que você está ranzinza e exigente. São apenas criaturas inferiores. Nada mais. Eu os entendo, embora os ache engraçados. São ridiculamente engraçados. Ou engraçadamente ridículos.
– Hum... Talvez meu humor não esteja muito bom hoje. É que às vezes acho que tudo é mesmo muito chato.
– Mas mesmo entre as cigarras há os chatos e as chatas.
– E como há. Sei que o mundo está cheio de cigarras estúpidas, mas pelo menos não ficamos voando contra as paredes.
– Mas o que você acha que uma raça superior pensaria de nós? – Sei lá. Além do mais, nem sei se tal raça existe. Pode ser que em algum lugar desse universo grandão exista uma estirpe superior, talvez mais inteligente. Mas prefiro os fatos. E o fato é que os besouros são uns chatos estúpidos. O fato é que não conheço raça superior.
– Tudo bem, não falo mais disso...
– Olha lá. O imbecil, depois de ficar ricocheteando por aí, agora está lá, de costas no chão e agitando as pernas, tentando se virar. Ô bicho burro. Parece que conseguiu, mas repare: o bicho é tão destrambelhado que agora tenta voar – contra a parede. Tenha a paciência. E olha que aquele lá é só mais um dos que temos visto desde que chegamos aqui. Bom, pelo menos é o que parece. Mas eu não ficaria surpreso se ele fosse o mesmo que temos visto desde então. São parecidos não somente na burrice, mas também na aparência. Nunca sei diferenciar um do outro.
– Ei, antes de você continuar, viu quem acabou de chegar?
– Quem?
– Você é cego?!
– É mesmo! É que eu nem havia reparado. Mas só vou me calar porque são maiores do que eu. Tadinhos: nem conseguem sair do chão com seu par de pernas. Acho que agora é minha vez de começar a achar graça.
– Silêncio!

anterior      próxima                  
® 2005 
-   -  Lívio Soares de Medeiros  - Todos os Direitos Reservados