O SUB-REALIZADOR 
 

(Não sei a data em que foi publicada) 

A convivência com livros acaba gerando outros livros. A impressão forte que tenho é a de que a literatura é a arte que mais se alimenta de si mesma. Mesmo tendo como substrato a vida e outras formas artísticas, a sensação que tenho é a de que a literatura é a forma de arte que mais depende de si mesma para continuar existindo. Segundo Borges, “sem leitura não há literatura”. Penso que a literatura nasce, principalmente, da convivência com a literatura. Ela não tem de ser necessariamente metaliteratura, mas vem à tona, assim me parece, por causa do convívio consigo própria. Ela surge devido ao contato consigo mesma; é uma arte “egoísta”. Caminhar entre livros não implica fazer literatura. Contudo, tenho comigo que fazer literatura implica caminhar entre livros. Há escritores em que esse caminhar entre livros é mais nítido, devido às alusões, referências. Noutros, nem tanto, o que não significa que não caminham.

Livros, livros, livros...

Quando eu era adolescente, metido a ler coisas que, em tese, não eram voltadas para infanto-juvenis, ocorreu de eu ter em mãos o “Psicologia da Adolescência”, de Arthur T. Jersild. Querendo entender o furor juvenil que então ocorria comigo, comecei a leitura. Lembro-me de pouca coisa, mas uma de que nunca me esqueci foi o conceito do jovem considerado sub-realizador. Em minha empáfia, deduzi que eu era assim. Diz o livro: “O chamado ‘sub-realizador’ é um estudante cujo trabalho escolar é claramente inferior ao que se poderia esperar com base nas suas notas num teste de inteligência”. Nunca fiz um teste de inteligência, por medo de me decepcionar.

A citação acima não veio de memória. Tenho o livro bem aqui. Eu o consegui hoje (28/07), num sebo. Quando o vi pela primeira vez, foi na biblioteca do Cesu. Eu era freguês de carteirinha. Estudava pela manhã, almoçava e ia para lá. Passada essa fase, foram raras as vezes em que me vi diante do livro de Arthur T. Jersild. Acho que só o revia mesmo nas vezes em que eu voltava ao Cesu. Há pelo menos uns quinze anos eu não tinha contato com a obra.

Gostamos de relatar coincidências. Numa crônica publicada em 1996, falei sobre os livros “As mais belas Histórias”. Minha procura me fez ir até um sebo. Não os achei. São quatro volumes, pequenos, de capa azul e Rapunzel numa sacada. (Se você os tiver e quiser vendê-los ou dá-los para mim, beleza.) Mesmo não os achando, dei uma conferida no acervo. Quando eu já aguardava o troco referente a dois livros que havia comprado, olho para o lado, na seção livros sobre psicologia, e vejo o “Psicologia da Adolescência”. O sorriso foi leve, não me tornei afoito. É como se eu tivesse a certeza de que um dia ele estaria comigo, sendo que para isso nenhum esforço seria necessário. Saudade, página revisitada... Eu o peguei. Nisso, guardei o troco. Olhei capa, contracapa. Depois, o abri. Aí veio a coincidência: eu o abri bem na parte em que se mencionava o tal do jovem sub-realizador. Li uma linha, fechei o livro e o trouxe para casa.

No momento em que bati os olhos precisamente no trecho que tratava sobre o jovem sub-realizador, veio-me a idéia para esta crônica. Achei coincidência, após tantos anos, eu abrir o livro bem nesse trecho, cuja essência ficou na recordação. Reencontrar um livro anos depois e bater os olhos bem no trecho preferido... Por um capricho qualquer, ocorrido antes da citação no terceiro parágrafo, eu não estava conseguindo achar o trecho sobre os tais jovens sub-realizadores, aqui em casa. Hoje, não sou mais jovem. Mas realizo, embora ainda duvidando.

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