Minha 
                                                          primeira professora 
                                                          foi minha mãe. 
                                                          Não sou metafórico 
                                                          aqui. Sou literal. Ela 
                                                          pouco sabe escrever. 
                                                          As letras saem lentas, 
                                                          tortas, truncadas. Embora 
                                                          não tenha tido 
                                                          a oportunidade de freqüentar 
                                                          regularmente uma escola 
                                                          quando mais nova, não 
                                                          se deu por vencida. 
                                                          Depois de madura, com 
                                                          os filhos grandes, esteve 
                                                          num desses cursos de 
                                                          alfabetização 
                                                          para adultos. Melhorou 
                                                          um pouco a escrita e, 
                                                          na matemática, 
                                                          passou a se virar por 
                                                          conta própria.
                                                        Foi ela 
                                                          quem me ensinou as primeiras 
                                                          palavras que aprendi 
                                                          a escrever. Naquela 
                                                          época, não 
                                                          fiz o que então 
                                                          era chamado de pré. 
                                                          Fui entrar numa sala 
                                                          de aula aos 7 anos, 
                                                          levando contudo algumas 
                                                          palavras e alguns nomes 
                                                          que já sabia 
                                                          escrever, graças 
                                                          a minha mãe, 
                                                          e com noções 
                                                          de matemática, 
                                                          graças a meu 
                                                          pai, que me tomava a 
                                                          tabuada enquanto caminhávamos.
                                                        Eu viria 
                                                          depois a saber que as 
                                                          primeiras letras que 
                                                          rabisquei foram motivo 
                                                          de apreensão 
                                                          para minha mãe. 
                                                          Eu parecia ter uma espécie 
                                                          de nervosismo incurável 
                                                          e incontrolável. 
                                                          Bastava que eu tivesse 
                                                          um errinho bobo para 
                                                          que eu rasgasse o caderno. 
                                                          Ela, paciente, tentava 
                                                          me mostrar que não 
                                                          era por aí, que 
                                                          errar é natural... 
                                                          Eu insistia consumindo 
                                                          folhas e mais folhas 
                                                          do caderno. Ela, cada 
                                                          vez mais temerosa, chegou 
                                                          a pensar que eu seria 
                                                          um daqueles que dariam 
                                                          trabalho quando passasse 
                                                          para dentro de uma sala 
                                                          de aula. Cautelosa, 
                                                          avisou a professora 
                                                          de meus rompantes. Em 
                                                          sala de aula, nunca 
                                                          me enfureci.
                                                        Hoje, 
                                                          me lembrando dessa época, 
                                                          algumas imagens e fatos 
                                                          foram desancorados. 
                                                          Os cadernos que eu destruía, 
                                                          por exemplo, não 
                                                          eram comprados. Eram 
                                                          feitos pela minha mãe. 
                                                          Ela aproveitava os papéis 
                                                          que embrulhavam os pães 
                                                          que meu pai invariavelmente 
                                                          trazia. Durante sua 
                                                          vida inteira ele trabalhou 
                                                          numa padaria. Sempre 
                                                          houve pão, sempre 
                                                          houve papel. Minha mãe 
                                                          juntava os papéis 
                                                          e depois fazia os cadernos 
                                                          que destruí.
                                                        Seria 
                                                          bom se eu os tivesse 
                                                          preservado. Os papéis 
                                                          que outrora haviam envolvido 
                                                          os pães eram 
                                                          caprichosamente passados, 
                                                          até ficarem lisinhos. 
                                                          Depois, eram recortados 
                                                          e colados. Por último, 
                                                          linhas espaçosas 
                                                          eram riscadas. Eu gostava 
                                                          de acompanhar a feitura 
                                                          dos cadernos. Prestava 
                                                          atenção, 
                                                          queria aprender, dava 
                                                          palpites, mas não 
                                                          sabia preservá-los. 
                                                          Não me lembro 
                                                          se cheguei a levar uns 
                                                          merecidos tapas pelo 
                                                          meu comportamento. Se 
                                                          não, creio que 
                                                          foi pelo fato de que 
                                                          ela considerava que 
                                                          minha atitude não 
                                                          era luxo nem chilique 
                                                          de menino. Certo é 
                                                          que bem alimentado e 
                                                          tendo papel reciclável 
                                                          em casa, fui me arriscando 
                                                          no mundo das letras. 
                                                          A paciência e 
                                                          a compreensão 
                                                          dela não foram 
                                                          em vão. Minha 
                                                          caligrafia chegou a 
                                                          ser elogiada pela Dona 
                                                          Madalena, a professora 
                                                          da primeira série.
                                                        O gosto 
                                                          que eu viria a adquirir 
                                                          por livros vem da influência 
                                                          que recebi. A limitação 
                                                          de meus pais, tanto 
                                                          financeira quanto de 
                                                          escolaridade, não 
                                                          os impediu de transmitir 
                                                          para mim a idéia 
                                                          de que aprender é 
                                                          bom e necessário. 
                                                          Fizeram isso meio sem 
                                                          querer, meio sem método; 
                                                          intuitivamente. Funcionou. 
                                                          Minha mãe, às 
                                                          voltas com os cadernos 
                                                          artesanais; meu pai, 
                                                          com as revistinhas do 
                                                          Tex Willer, que eu depois 
                                                          leria. Chegamos a comentar 
                                                          algumas das histórias 
                                                          – numa delas, 
                                                          o Jack Tigre leva uma 
                                                          surra assim que chega 
                                                          sedento a um vilarejo. 
                                                          Muitos anos depois, 
                                                          enquanto eu e meu pai 
                                                          conversávamos 
                                                          sobre essa história, 
                                                          eu me surpreendi com 
                                                          a profusão de 
                                                          detalhes lembrados por 
                                                          ele.
                                                        Fizeram 
                                                          de tudo para que não 
                                                          faltasse nada para minha 
                                                          educação. 
                                                          Alimentaram-me de pães, 
                                                          deram-me livros. Cumpriram 
                                                          bem o papel.