NICK 
 

(Publicada em 4 de julho de 1.997) 

Quando ele chegou, era ainda muito pequeno. Nem conseguia se virar direito por conta própria. Chegou aborrecido, manhoso, medroso. Tive de ter muita compreensão e paciência para aceitar sua incompreensão e impaciência diante de minha presença. Levou mais ou menos um mês para que ele demonstrasse me considerar um membro da família que ele então passara a integrar.

Desde sua vinda ficou bem claro que meu irmão tornara-se seu melhor amigo. Ele o alimentava, matava sua sede, cuidava dele. Entre os dois ia se solidificando uma amizade profícua. Ao vê-los, eu freqüentemente me lembrava de um trecho de Borges: “A amizade dos homens,/a devoção dos cães”. Embora me vendo praticamente o dia inteiro, ele se mantinha distante de mim, provavelmente estranhando meu jeito de caminhar. Fui o último da casa a que ele se afeiçoou. Quando isso ocorreu, pudemos apreciar juntos bons momentos, ocasiões memoráveis e engraçadas.

Seu corpo crescia rápido; sua habilidade ia, aos poucos, proporcionando-lhe realizar travessuras que deixavam furiosa minha mãe. Às vezes eles se desentendiam, mas logo voltavam a se entrosar. Quando nós, os integrantes da família, estávamos com ele, nos soltávamos, cada um a seu modo. O tom de voz era luxento, dengoso. Conversávamos com ele o tempo todo, mesmo recebendo em troca apenas olhares e gestos. Não havia diálogo; entretanto, havia reciprocidade. Ele nos entendia, confiava em nós.

É curioso. O tom de voz, o modo como tratamos os cães. Muitas vezes, agimos semelhantemente com as crianças. Os infantes e os cachorros deixam-nos à vontade para sermos bobões, meninões. Segundo Chaplin, “as crianças e os cachorros são os melhores atores em filmes”. Eles desconhecem o que é ser ridículo, o que traz à tona o ridículo e o carente que somos. Já vi carrancudos se derreterem com seus pimpolhos.

Nick foi trazido pelo meu pai, que não fechou o portão. Nick foi atropelado há algumas madrugadas. Meu irmão foi quem o encontrou morto, sangrando próximo ao meio-fio. Meu irmão conversa enquanto sonha, e já pude ouvi-lo brincar com o Nick.

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